sábado, 23 de maio de 2009

Memorial de leitora

Aline no país das letras

Nós, adultos, temos uma grande dificuldade de lembrarmos das passagens de nossa infância. Mas as coisas que realmente são marcantes, aparecem em nossa memória através de imagens, cheiros, sabores, sensações. Infelizmente, nossas primeiras conquistas fazem parte da primeira infância e, dessas, não lembramos mesmo. Nosso primeiro banho, nossos primeiros passos, a primeira mamadeira, a primeira gargalhada e nossa primeira palavra alegraram nossos pais e os encheram de orgulho, que aguardavam por tudo isso com expectativa. Mas a alegria de, finalmente, decifrar aqueles símbolos negros que me saltavam aos olhos, ah, disso me lembro muito bem.
Em minha casa moravam meu pai, minha mãe e minha avó paterna, Elsa. E-L-S-A . Isso mesmo, era assim que ela repetia, quando perguntavam seus nome, soletrando. Foram vinte e três anos adormecendo ao lado dela, no mesmo quarto, com um abajur que separava as camas. Antes de dormir, e para incitar o sono, ela pegava sua revista de fotonovela e lia. Ria, comentava, apagava o abajur e adormecia.
Mas um dia, além de trazer novas revistas da casa de seu irmão, minha avó trouxe também alguns gibis. Foi então que comecei a imitá-la. Todas as noites ela e eu dividíamos a luz do abajur e , mesmo sem ter a mínima idéia do que estava escrito naqueles balões, criava histórias em minha cabeça, lia as imagens e só fechava os olhos quando ela o fazia.
Mas a curiosidade em decifrar aqueles pontinhos pretos ia crescendo e um dia, com a permissão de minha vó, convidei as filhas do zelador do prédio para irem lá em casa brincar de escola. Embora eu quisesse ser a professora, era a minha chance de começar a aprender a ler. Elas eram mais velhas e já freqüentavam a escola. Dito e feito. A brincadeira se estendeu por semanas.
Em um domingo pela manhã, minha mãe e eu estávamos na sala de casa, quando peguei o jornal e comecei a ler. Minha mãe pensou que mais uma vez eu estava lendo as imagens, mas achou a leitura diferente do que das outras vezes. Esforçava-me muito e algumas sílabas demoravam para sair. Quando foi conferir, minhas palavras eram exatamente as mesmas que estavam escritas no jornal. Ficou surpresa, e acredito que muito feliz.
Ingressei na pré-escola alfabetizada. Minha alfabetizadora? Minha avó, Elsa. E-L-S-A. Duas vogais e duas consoantes. Dissílaba. Paroxítona. Substantivo próprio. Acho que isso ela não sabia. Também, não fez diferença. Mas que ela soube despertar me mim a curiosidade necessária para entra naquele espelho, isso ela soube.


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